Povo
Wajãpi, uma barreira indígena contra a mineração na Amazônia
Etnia vive em terras dentro da reserva mineral
extinta por decreto pelo Governo Temer.
Decisão foi suspensa após protestos, mas indígenas
querem que ela seja derrubada de vez
Reserva
Wajãpi, AP 11 SET 2017 -
15:41 BRT
Crianças
wajãpi brincam na floresta amazônica. Victor Moriyama
Os índios Wajãpi, que se espalham por um pedaço da Amazônia brasileira,
são uma das memórias vivas mais antigas deste país. Viviam na floresta
amazônica desde antes que o Brasil fosse descoberto em 1500, e sobreviveram
todos estes séculos graças à relação simbiótica que mantêm com a natureza.
Cuidam dela, e ela cuida deles. Apesar de levar tanto tempo ali, só conseguiram
demarcar suas terras legalmente em 1996, durante o Governo de Fernando Henrique
Cardoso. Mesmo assim, são constantemente acossados por madeireiros e
garimpeiros ilegais. Por isso, se movem pela selva para defender suas fronteiras.
Sabem que são alvo potencial de interesses dos não
índios, como eles chamam as demais raças.
- FOTOGALERIA Nas terras Wajãpi
- Governo Temer recua e suspende por 120 dias mineração em área da Amazônia
- Governo Temer convoca mineradoras à nova caça ao ouro na Amazônia
- Congresso abre portas para ampliar desmatamento na Amazônia
Os Wajãpi se concentram numa área
de 6.000 quilômetros quadrados, no Estado do Amapá, um pouco abaixo da Guiana
Francesa. Uma placa na entrada avisa que é proibida a entrada de estranhos. O
EL PAÍS obteve autorização para visitá-los na semana passada, enquanto digeriam
as notícias sobre o imbróglio envolvendo o fim da Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca). Inicialmente extinta por decreto pelo presidente Michel
Temer, a decisão agora está suspensa até o final do ano.
O Governo quer que ela seja acatada
para ampliar o acesso das mineradoras à floresta, mas os Wajãpi não querem nem
ouvir falar do assunto, mesmo com a promessa de que suas terras serão preservadas.
A Renca pega metade da reserva Wajãpi, o que deixou os índios bastante
irritados. “Como alguém pode tomar uma decisão sem consultar quem será
afetado?”, questiona Japu Wajãpi, um dos 1300 indígenas desta etnia que vive
nas aldeias da área indígena.
Para chegar ali, é preciso pegar
uma estrada de terra saindo da capital Macapá. São seis horas de viagem com
verde dos dois lados do caminho. Chegando à reserva, mais verde ainda. A perder
de vista. Entrar nesse pedaço da floresta é como atravessar um portal. Homens e
mulheres andam com uma espécie de pareô vermelho, e o dorso nu, durante o dia,
para suportar o calor de mais de 30 graus. Suas casas são construídas com
bambu, cobertas com palha, onde eles dormem em redes. Vivem de forma
comunitária, do cultivo de alimentos, além da caça e da pesca. Pintam-se com
tinta de jenipapo e de semente de urucum. Todas as mulheres carregam um pente
na cintura para desembaraçar os cabelos. Cuidam das crianças e se preocupam com
a preparação dos alimentos, enquanto os homens ficam com os trabalhos que
empregam força física, além de vistoriar as suas fronteiras.
A relação com a floresta é
umbilical e mística. A Amazônia, entendem eles, é de propriedade de deuses
invisíveis. “A terra tem dono, o rio tem dono, as árvores têm dono. Não foi o
homem que inventou a natureza”, diz o cacique Kasiripiná Wajãpi. Por isso ela
tem de ser respeitada, e os minérios, ficar onde estão para que as árvores
estejam sempre em pé. “Sem a gente acho que esta floresta nem existiria”,
desabafa. É a floresta que os alimenta e os protege da ganância dos homens
brancos que os perseguem ao longo da sua história.
O mapa da Renca, dentro do
quadrado violeta
A nova ameaça atende pelo nome de Renca, a área de 46.499
quilômetros quadrados, cobiçada pela mineração, muito embora só
haveria acesso a 10,5% de área desse quinhão. Apesar do nome – reserva nacional
do cobre e associados – a Renca foi criada no final da ditadura, mais dentro de
uma estratégia nacionalista dos militares para proteger a área dos
estrangeiros, do que um verdadeiro intento de desenvolver a mineração. Nenhuma
mineradora teve acesso ali, muito embora haja registro de mil garimpeiros
ilegais, segundo o Governo, incluindo pistas de pouso de avião clandestinas. Na
prática, a Renca contempla uma dezena de reservas ambientais, como a dos
Wajãpi, e a comunidade de São Francisco de Iraitapuru, no sul do Estado, onde
vivem famílias que vivem da extração de castanha. Segundo o instituto Imazon, somente um décimo da Renca
não é reserva ambiental e poderia ser explorada.
Localizada entre os estados do Pará e Amapá, a Renca equivale a uma Dinamarca.
Acumula tesouros, como ouro, cobre e manganês. Mas tocar na selva amazônica é
um problema, quando 20% da fauna do planeta vive dentro dela. Por isso a
decisão de Temer gerou reações imediatas. Criou, inclusive, um mal-estar dentro
da União Europeia, que estaria cogitando uma posição oficial contra as mudanças
na região.
De nada adiantou o Governo garantir que vai
preservar as áreas protegidas. Ninguém acredita que isso seja possível sem
gerar danos a elas, uma vez que o ecossistema seria afetado de uma forma ou de
outra. “Se eliminar a Renca, começa a
corrida da mineração para a Amazônia”, alerta Verena Almeida, ecóloga que
trabalha com a floresta. Com ela, viriam o desmatamento, e rios poluídos.
“Mesmo que a mineração esteja longe daqui, o rio vai seguir o fluxo e trazer
contaminação para dentro da nossa reserva”, reclama Japu Wajãpi. Viria, também,
um aumento da população, atraída pela “corrida do ouro” na Amazônia,
colocando em risco a vida dos índios e dos ativistas que defendem as florestas.
Não se trata de exagero. As
notícias de assassinatos de indígenas em conflito por terras e de defensores do
meio ambiente se multiplicaram no Brasil nos últimos tempos. Nesta sexta, a
agência de notícias Amazônia Real teve a confirmação de que houve assassinato
de índios isolados por garimpeiros ilegais na terra indígena Vale do Javari,
oeste da Amazônia. O crime teria acontecido no mês de agosto. O Ministério
Público Federal do Amazonas está investigando o caso. Um relatório da ONG
Global Witness, divulgado em julho, revelou que o país foi campeão de
assassinatos no mundo em 2016, com 49 ativistas mortos.
Os Wajãpi sabem os riscos que
correm e por isso se articulam com outras comunidades que vivem da floresta.
Buscam apoio até de organizações ambientais estrangeiras. Querem proteger sua
etnia e sua cultura, com seus códigos próprios (incluindo a matemática Wajãpi),
que perdura durante gerações. Falam um idioma da família Tupi Guarani. Mas há
poucas décadas adotaram o português como seu segundo idioma. Foi uma concessão
para aprender a defender-se das ameaças constantes.
Eles quase desapareceram duas
vezes ao longo da história. A primeira, teria sido por uma dor de amor, quando
o país ainda era colônia de Portugal. Um ancestral inconformado com o fim de um
relacionamento, decidiu se vingar da mulher que o desprezou. Pediu aos
portugueses uma porção venenosa que utilizaria para matá-la. Algo deu errado, e
o tal veneno matou não só a vítima, mas quase toda a aldeia.
O cacique Kasiripiná Wajãpi V.Moriyama
Depois disso, se isolaram nas
matas, e tinham contatos muito eventuais com os não indígenas. A segunda prova
de fogo se deu nos anos 1970, ao contrair sarampo. A doença chegou por
exploradores de minério e madeireiros, quando o Governo militar construiu uma
estrada federal para ligar Estados da Amazônia. A rodovia passava por diversas
terras indígenas. Os Wajãpi somavam, então, 2000 pessoas. A falta de anticorpos
matou quase toda a população. Sobraram apenas 150. Kasiripiná foi um dos que
viu bebês, velhos e crianças morrerem naquele tempo. “Não queremos que isso
aconteça de novo. Por isso Temer tem de eliminar esse decreto para sempre”,
conclui.
A pressão para derrubar a decisão
presidencial chegou ao Ministério Público Federal do Amapá que entrou com uma
ação para anular o decreto em definitivo. A Justiça do Estado concedeu uma
liminar acatando o pedido. Mas, os Wajãpi sabem que o perigo vem tanto dos
potenciais invasores, como de interesses econômicos poderosos, como os que estão sendo defendidos no Congresso.
Caso da PEC 215, que quer rever demarcações, ou o PL 1610, para garantir a
exploração de minério em terra indígena, ambos defendidos por aliados do
presidente Michel Temer. Após assinar o fim da Renca, os Wajãpi se convenceram
que o Brasil, por primeira vez, “tem um presidente sem alma, sem espírito”, diz
Jawapuku Wajãpi. “Temer não sente dor, não enxerga a floresta, nem os
indígenas, nem as crianças”, diz ele. A luta dos Wajãpi para manter a Amazônia
intacta continua.
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